segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O memorando e os municípios

O famoso memorando de entendimento com a “troika” diz no seu ponto 3.44:
“Reorganizar a estrutura da administração local. Existem actualmente 308 municípios e 4.259 freguesias. Até Julho 2012, o Governo desenvolverá um plano de consolidação para reorganizar e reduzir significativamente o número destas entidades. O Governo implementará estes planos baseado num acordo com a CE e o FMI. Estas alterações, que deverão entrar em vigor no próximo ciclo eleitoral local, reforçarão a prestação do serviço público, aumentarão a eficiência e reduzirão custos.”

Este tipo de decisão, de cima para baixo, de régua e esquadro à frente de um mapa, foi comum noutras épocas a partir do governo central em Lisboa. Agora parece que o mapa passou da mesa da cozinha de Lisboa para a mesa da cozinha da Europa.
Reorganizar apenas com o fito da poupança é argumento pobre e desconhecedor do que representam as comunidades locais.

A reorganização local deve partir das próprias populações, que sabem melhor que ninguém o que lhes convém. Fazê-lo sem as auscultar é perpetuar o divórcio entre o central e o local e trair a confiança das comunidades.

Centralizar parece ser a palavra de ordem. Esquecendo cada vez mais as vilas e aldeias, e relegando-as para as portas do fundo.
Fala-se muito da desertificação do interior, quando ela é provocada pelo governador litoral, que o esvazia de tudo o que pudesse atrair ou fixar gente.
As gentes urbanas, com transporte à porta, nem sonham a dificuldade das pessoas no resto do país ao deslocarem-se quando pretendem coisas tão simples como ir ao médico, à escola, ao comércio, às finanças, à conservatória, à Câmara… Obriga a que se tenha carro ou se vá de táxi, um luxo exigido a quem não tem posses para o ter. Já nem falando da qualidade dos acessos às redes de telemóvel e de Internet. A “troika” e os nossos governantes, antes de falar, deviam viver um mês numa aldeia longínqua, sem carro.

Pretende-se afastar do povo aquilo que é do povo, desprezando sua voz. Antes de fazer seja o que for que decidam fazer, ouçam pois as comunidades, acolham as suas propostas e referendem-nas localmente. 

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Nos 58 anos da sua morte - parte do prólogo de Amar e Servir - Hipólito Raposo

Por causa deste prólogo o autor foi preso e deportado para os Açores por Salazar.
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Relanceando os olhos para a esquina do Planeta, com admiração sempre renovada, podemos observar o que se vai passando na célebre República da Ilusitânia, criação maravilhosa da nova idade do ferro e oiro.
No mapa da geografia humana, fica situada à maior latitude do Arbítrio Pessoal e na maior longitude do meridiano da Razão Política, tendo sido revelada das altas nuvens à terra inteira pelos pregões mercenários da glória e pela voz metálica da radiodifusão, através do etéreo espaço.
Nesse estranho país dos paradoxos e antíteses, por misteriosa feitiçaria das cifras e dos cifrões, da adição de parcelas negativas resultam somas ou totais positivos; os naturais veêm e sentem quadros de inferno onde aos forasteiros se revelam miragens de paraíso; uns vivem a sonhar ventura, outros vão tropeçando em duras pedras ou caindo em ciladas de perdição.
                Mas se algum curioso da verdade quisesse descer ao plano das realidades, não as conseguiria tocar: elas fugir-lhe-iam, à semelhança do arco-íris que só de longe se contempla e subitamente desaparece, quando alguém avança ao seu encontro.
                No mesmo signo de contradição, para corresponder à exigência do momento histórico em que possam reclamar-se extremas resoluções de sacrifício, por lá se descobre a vegetar uma sociedade de gente de nova feição que pela prática abusiva das curvas, deixou perder a prerrogativa da verticalidade da espinha com que o Criador distinguiu os humanos, contentando-se com a comodidade e o viscoso proveito de moluscos.

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Pela Ética Social que nessa distante república vigora, a falta de recato e vergonha aceita-se complacentemente entre os fiéis de Plutão, revelando-se por frequentes audácias de banksters de novo estilo, ou por indústria de ladravazes em metódicos desfalques que por indulgente eufemismo, se chamam desvios.
A tais crimes, nem os comentários das estações oficiosas, nem as gazetas e tribunais já ousam chamar roubo ou latrocínio, conforme exigiriam a correcção e a legítima propriedade da velha língua.
                Nessa República que o Divino Grego não pôde sonhar, tudo decorre em regime de ficção cenográfica, com a jovial concórdia de uma numerosa câmara que, por concerto prévio, vive na bocejante paz da unanimidade, sem ninguém ousar em voz alta lembrar-se de que em todos os tempos e lugares, sempre as assembleias existiram com a pressuposição da justificada divergência de pareceres.
                Se não fosse essa lei da servil obediência ao paradoxo, a concordância por dogma político, importando a infalibidade do Poder na Ilusitânia, justificaria também, por veredicto da consciência pública e providência de boa economia de tempo e dinheiro, a moralizadora supressão de um órgão sem a função que lhe pertence.
                É assim que os erros se moderam, tudo se facilita e perdoa nos repetidos e lautos banquetes de Baltazar, em que os densos vapores das salas a ninguém permitem reler as palavras fatídicas.
Hipólito Raposo in Amar e Servir – Livraria Civilização, 1940 

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

AS REPÚBLICAS E A MONARQUIA - Henrique Barrilaro Ruas

Tal como os homens, também as nações precisam de viver habitualmente. Mas nem todo o hábito é virtude. Há-os que são vícios. E, quando o vício é colectivo, não há ninguém que não sofra com ele. Porque é da natureza do indivíduo participar do bem comum, e também do mal comum, da sociedade a que pertence. 


A República, em Portugal, começou por ser o contrário de um hábito. Actos isolados, casos soltos: nada mais. Eram quase todos da matéria de que se fazem os vícios. Mas, para serem vícios, faltava-lhes serem habituais. Nenhum vício é episódico. 


Mais tarde, por acção alheia, a República deixou de ser em episódios. Fez-se hábito. Por isso foi aplaudida. Aplaudiram-na os viciosos e os virtuosos. Os primeiros porque viam enfim estabelecido, assente, de algum modo indiscutível, o que antes não passara de tentativa fruste. Os últimos, porque estavam ainda dominados pela ideia (deixada por muitos séculos de Poder Real) de que habitual, em Política, é necessariamente virtuoso. 


Foi assim que começou o culto da continuidade. Esse culto tem tomado as formas mais aberrantes e mesquinhas. Nalguns casos, é apenas o culto do contínuo (uma das fontes mais caudalosas da Burocracia nacional). 


Mas eis que o tempo entrou a fartar-se da continuidade no mal. E já vai ensinando a indivíduos e grupos que não basta durar: é preciso durar bem. 


Por causa da República-sistema, é a autentica república dos Portugueses que perde o norte do Bem Comum. As competências, deslocadas da sua função natural, tornam-se incompetências. Os homens gastam-se em tarefas sem sentido. As instituições definham. O humano desejo de participar faz-se maldição. O que podia ser belo e fecundo rito de universalização do individual desce ao nível da farsa ou da paródia. As gerações que deviam dar à Pátria viço novo e uma inquietude transfiguradora, quase não trazem mais do que a dúvida e a negação. E muitos dos raros que deixam crescer na alma a sede de heroísmo, vão queimar-se em aventuras sem beleza. São estes os frutos da ideologia republicana. 


Porque, na crise aberta do mundo de hoje, na fermentação e gestação do mundo de amanhã, não está presente a integral e viva portugalidade, mas a rigidez de um esquema, uma convenção, uma fórmula jurídica. 


Toda a Nação Portuguesa fermenta e lateja, na promessa e na exigência de uma vida nova. A todo esse murmurar profundo e crescente, a República só oferece, ou a rigidez imutável, ou a própria mobilidade como ideal. 


É sobretudo para as novas gerações que a Monarquia há-de surgir identificada com a Esperança. Esperança de dignidade e justiça; esperança de paz. Esperança de uma vida que seja autêntico e fecundo conviver. Esperança de uma alegria nova, em que o corpo e a alma comunguem. Esperança de vitória do natural sobre o absurdo, do normal sobre o obrigatório. Esperança no abraço do Homem com a Terra, no acordo dos homens uns com os outros, na realização da Pessoa para além de todos os planos do colectivo.


(1963) 


Henrique Barrilaro Ruas (23 de Março de 1921 - 14 de Julho de 2003)


in http://jacarandas.blogspot.com/2004_07_01_archive.html

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O poder das pessoas e das suas comunidades


Durante décadas a direita tradicional liberal fez a apologia dos mercados como motor da humanidade. Do outro lado a esquerda socialista agarrava-se ao estado tutor centralizador, mais tarde convertido em “estado social”. Hoje temos um mundo em crise, motivada por esta dicotomia de sistemas que esqueceu uma terceira via: as pessoas e a sua organização comunitária natural.
Vivemos numa sociedade de informação e comunicação que promove a participação e possibilita o regresso à vida comunitária. Podem existir fórmulas de democracia que sejam diferentes da representação partidária que temos. A democracia directa e participativa, é nos dias de hoje, com os meios de comunicação existentes, cada vez mais uma possibilidade real. Pelo menos ao nível da organização comunal. Os municípios portugueses, com toda a sua identidade histórica, podiam ser entidades comunais, com poderes administrativos substancialmente maiores e que poderiam ser governados por um sistema de democracia directa (assente nas assembleias comunais). Depois, basta coroar essas repúblicas de homens livres, com um Rei que una a nação. Bastaria um rei para unir a nação e alguns ministros (eleitos por uma assembleia de representantes comunais e corporativos) para questões de administração central e relações exteriores. Um governo com substancialmente menos poderes. Um Rei que representa a nação para a chefia do estado, das forças armadas e dos negócios estrangeiros. É apenas uma ideia diferente de sociedade. Mas merece pelo menos o respeito de alternativa perante a falência do modelo actual.
Se continuarmos na velha dicotomia entre a apologia dos mercados e do estado social, apenas continuamos a criar seres egoístas, que lutam nas ruas, não pela liberdade ou por outra qualquer causa comunitária, mas por um LCD, um plasma ou um computador, que possam levar para a sua casa depois da montra partida. Apenas continuamos a alimentar predadores dos solos férteis e dos recursos naturais, que não se importam com o que poderá acontecer nas gerações seguintes, desde que consigam obter o lucro fácil numa qualquer operação especulativa.
Devolvamos pois o poder às pessoas e às suas comunidades.